Samo Tomšič em paralaxe

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

A psicanálise de Freud à Lacan pressupõe o ser social posto pela sociabilidade mercantil, ou seja, o indivíduo social e, portanto, o dinheiro e, mais do que isso, o próprio capitalismo. Segundo o texto que aqui se vai examinar “não é o inconsciente que explica o capitalismo”, mas o oposto, “é o capitalismo que explica o inconsciente” (Tomšič, 2015, p. 108). Para examinar essa tese – e os seus problemas – é preciso estudar criticamente o que diz Samo Tomšič em seu livro O inconsciente capitalista (2015). Mas será que se chega a algum lugar?

Ele parte de Freud:

A Interpretação dos Sonhos quiz ir além dos seus significados para examinar os mecanismos formais que podem ser reconhecidos nos processos oníricos, isolando assim sua função de satisfação (Tomšič, 2015, p. 100).

A sentença não é clara; eis que ela é tipicamente lacaniana; mas é preciso entender o que diz, desafiando a sua obscuridade. O sonho está sendo concebido como produto de um trabalho mental. Eis que ele vem a ser um texto, uma construção imagética e linguística que tem de ser analisada e decifrada para ser compreendida. Segundo Tomšič, há que se distringuir no processo do sonho, a produção de significação da produção de satisfação. Eis que o sonho se constitui como uma duplicidade: trata-se de um relato significativo, mas também que manifesta um desejo.   

Freud descobre que por trás da produção de sentido, narração e visualização há um outro nível do texto onírico e uma outra produção. Aqui quero focar as duas características principais da noção freudiana de inconsciente, a já mencionada dimensão da produção, imanentemente duplicada na produção de sentido e na produção de satisfação e o papel central do trabalho inconsciente no processo que sustenta a satisfação da tendência inconsciente (idem, p. 100).

Trabalho inconsciente? Sim, segundo Tomšič, “a psicanálise parte de uma teoria do trabalho do inconsciente” (idem, p. 100). O fato de que Freud tenha empregado o termo trabalho para se referir à atividade psíquica autoriza a pensar que há trabalho mental e trabalho social e que eles, apesar de separados, são homólogos? Mesmo julgando que essa suposição clama por crítica e rejeição, é preciso acolhê-la, pelo menos provisoriamente, para poder examinar os impasses a que conduz.

Para ele, a mente trabalha; é  um trabalho similar ao trabalho social aquele que produz o sonho. Eis que esse trabalho, que é inconscidente, se revela no consciente por meio do sonho lembrado e/ou contado. Examinando o sonho, Freud descobriu que ele porta significação e satisfação, sendo essa última aquela que encerra um enigma mais difícil de ser esclarecido. Ora, essa dualidade do sonho pode ser explicada por uma dualidade do trabalho que produz o sonho?

Segundo Tomšič, para Freud, o sonho expressa um desejo que não visa nem uma coisa específica nem algo indefinido, algo que faltou na vida corrente da pessoa sonhadora. Contudo, lendo Freud, parece que não é bem assim: “o sonho figura um desejo realizado”; “é um fenômeno psíquico de plena validade – mais precisamente, uma realização de desejo” (Freud, 219, p. 143). Se se examina os casos apresentados por Freud em seu A interpretação dos sonhos pode-se ver que se tratam sempre de simples desejos. E estes parecem provir, principalmente, das faltas sentidas na vida cotidiana inserida que está no mundo da mercadoria em que prevalecem as reificações.

Contudo, para o quase-estruturalista Tomšič, que apreende o mundo da vida por meio da reificação em que consiste o “sistema da lingua”, o sonho quer algo transcendente em relação às faltas cotidianas. Do que se trataria? Para responder a essa pergunta, diz: a) a ideia de produção inconsciente requer a noção de que há uma força de trabalho no inconsciente; b) “o trabalho do inconsciente não pode ser concebido sem o duplo carater do trabalho no capitalismo” (idem, p. 101). Ao fazer tais afirmações preliminares, que parecem inusitadas, esse autor faz o saber crítico da sociabilidade moderna, disposto por Marx em O capital principalmente, entrar no campo da interpretação dos sonhos e, assim, da psicanálise.

Ora, ao fazer essa analogia, ele obriga aquele que o estuda a consultar o capítulo primeiro de O capital. Aí se aprende que, no modo de produção regido pela relação de capital, o trabalho social, enquanto trabalho concreto, produz valores de uso e, enquanto trabalho abstrato, produz valores que se manifestam como preços e como quantidades de dinheiro. Seria então o caso de pensar que o sonho, além de significações, contem valor, algo como um valor-desejo? Haveria um dinheiro psíquico buscado em todo sonho? É preciso examinar melhor essa questão.

Tomsic, nota-se, está raciocinando com uma analogia entre o trabalho social e o trabalho psíquico. Há, pois, segundo ele, uma força de trabalho na psique que gera trabalho. Logo, o trabalho do inconsciente, enquanto trabalho concreto, produz significações, mas, enquanto trabalho abstrato, produz aquilo que causa satisfação. Eis que assim ele compreende esse trabalho psíquico com duplice tal como ocorre o trabalho social. Será que isso faz sentido?

Para Marx, os trabalhos concretos são distintos uns dos outros; mesmo sendo assim, eles consistem de trabalho em geral, não apenas subjetivamente; eis que tem objetivamente o caráter genérico de serem um gasto de força humana de trabalho. Dada essa propriedade comum que todo  trabalho tem, o processo do sistema econômico (a produção e a circulação de mercadorias) pode fazer uma redução do trabalho concreto ao trabalho abstrato. E essa redução, considerada como uma abstração real, cria uma medida de trabalho (o tempo de trabalho socialmente necessário à produção de cada mercadoria). É assim que o próprio processo econômico e social cria, para o seu próprio funcionamento, uma medida de trabalho que se expressa no valor de troca: essa medida é o valor.

Haveria algo semelhante na psique de todo indivíduo social? Não, é evidente que não. Mas se este fosse o caso, como Tomšič pode sustentar a sua analogia? Dado que ele se apresenta como um lacaniano, ele o faz e só pode fazê-lo por meio de uma interpretação voluntarista dos textos originais. Mesmo que não corresponda ao que está escrito, essa é a sua leitura.

O lacanismo é uma derivação do idealismo linguageiro de Saussure em que se aceita a materialidade dos significantes, mas se toma os significados, por eles sustentados, como se fossem meramente subjetivos ou intersubjetivos (Lacan empregaria aqui o termo “extimo” para se referir a algo dentro da psique que está fora dela). Ora, nessa perspectiva idealista, é bem óbvio que é impossível compreender a redução do trabalho concreto ao abstrato tal como se encontra no texto de O Capital. A solução da dificuldade só pode advir, portanto, por meio de uma leitura ardilosa de determinados parágrafos do escrito original.

  Estando, pois, dentro desse enquadramento ideológico, Tomšič se sente autorizado a apreender o trabalho social como se fosse meramente aquilo que está expresso em significantes. Ora, a linguagem não distingue já, segundo ele, o trabalho enquanto trabalho qualitativo (isto é, como elaboração de coisas concretas) e o trabalho enquanto trabalho quantitativo (isto é, como esforço ou labor)? Uma citação de Engels que está num rodapé do capitulo primeiro do Livro I não provaria o seu ponto?

O trabalho que cria valores de uso, qualitativamente determinado, é chamado de “trabalho” (work) em oposição a “labor” (labour).  O trabalho que cria valor, medido quantitativamente, é “labor” (labour), em oposição a “trabalho” (work). Engels acentua a oposição entre trabalho qualitativo e quantitativo, entre qualidades sensuais e matéria discursiva [ou seja, intersujetiva]. (Tomšič, 2015, p. 101).

Aqui é preciso ver que a citação de Engels existe, mas que ela não diz o que Tomšič pretende que diga. Ela diz que a lingua inglesa expressa (o que é, aliás, já de início, bem duvidoso) a diferença dessas duas determinações do trabalho no capitalismo; porém, ela não diz como essa diferença é socialmente constituida. Ora, Engels sabe bem que se tratam de determinações reflexivas de uma relação social – e não de “não-relação” como pensa o lacaniano; ademais, Engels também sabe que tais palavras dão forma a uma materialidade social – e que não são, portanto, meras formas de linguagem. Ei-la de modo completo, não truncado:

A língua inglesa tem a vantagem de possuir duas palavras distintas para esses dois aspectos diferentes do trabalho. O trabalho que gera valores de uso e é qualitativamente determinado se chama “work”, em oposição a “labour”; o trabalho que cria valor e é medido apenas quantitativamente chama-se “labour”, em oposição a “work” (Marx, 1983, p. 53).

De qualquer modo, é evidente que a postulação de Tomšič está errada porque o labor – qualquer labor real e efetivo – é, ao mesmo tempo, um labor quantitativo ou um gasto de força humana de trabalho. Trata-se, também, de um  labor concreto, determinado e qualitativo, mesmo se, a primeira vista, parece excluir essa segunda determinação. Eis que labor é trabalho concreto simples – mas não ainda trabalho abstrato. É preciso ter a coragem de afirmar aqui que já há erro na própria formulação de Engels. Em todo caso, ela não dá conta – é preciso repetir – a relação interna entre trabalho concreto e trabalho abstrato, distintiva do capitalismo, mas que não se encontra nos modos de produção anteriores.

Para endossar a sua leitura indissiocrática que anula as determinações reflexivas do trabalho no capitalismo, Tomšič cita um trecho de Marx em que ele apresenta o duplo caráter do trabalho no capitalismo fazendo uma concessão ao entendimento.  Ei-la:

Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso. (Marx, 1983, p. 53).

Apoiando-se supostamente nela, o entendimento do próprio Tomšič cria um abismo entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato que nenhuma ponte lógica por ligar: eis que passa a existir um báratro entre as duas determinações reflexivas do trabalho no capitalismo. Ora, para suprimi-lo formalmente, a falsificação do texto original precisa ir mais longe.  Para dar conta do problema lógico que cria, ele recorre ao truque de Slavoj Zizek que consiste em dizer que se trata apenas de um problema perspectiva, de ângulo de observação; eis que o trabalho concreto e o trabalho abstrato formariam uma estrutura de paralaxe:

Marx põe claramente essa separação no trabalho: todo o trabalho está em dois lados ao mesmo tempo. A questão não consiste, portanto, em que a forma mercadoria tome de alguma forma o trabalho para representá-lo de uma forma inadequada. Estamos lidando com uma estrutura de paralaxe, segundo a qual o trabalho aparece primeiro de um lado e depois do outro, uma vez como matéria abstrata, produto da força de trabalho, outra como forma concreta, resultado do processo de trabalho. (Tomšič, 2015, p. 102).

Até aqui se sugeriu como Tomšič distorce escritos de Marx para fazer uma interpretação astuciosa de escritos de Freud que tratam do inconsciente e do sonho. Contudo, ele não apenas considera que há uma homologia entre “trabalho do espírito” e “trabalho social”, mas algo ainda mais surpreendente. Eis que pensa que o trabalho que produz o sonho busca uma espécie de dinheiro subjetivo. A partir daí, junto com Lacan, chama essa forma de gozo (jouissance[2] em francês). O gozo seria, então, o dinheiro do espírito.

Ora, essas afirmações, que parecem insólitas, são comprováveis; eis o que ele mesmo escreve (idem, p. 102): “os sonhos são como mercadorias: hieroglifos, em se deve diferenciar significado e valor”. Há uma “divisão entre trabalho abstrato e concreto na mente”. O trabalho do consciente consiste em trabalho concreto; “o trabalho inconsciente está do lado do trabalho abstrato”. “A diferença (…) entre significado e satisfação conserva a diferença entre valor de uso e valor”.

É assim que prossegue: “De acordo com o duplo caráter das mercadorias, a satisfação contém duas satisfações, que se refletem no par ‘desejo concreto’ (wish – usa aqui uma palavra em inglês) e ‘desejo abstrato” (désire – emprega em sequência uma palavra do francês lacaniano)”. A primeira é assim associada ao valor de uso e a segunda ao valor de troca.

Note-se que ‘desejo’ (désire) aqui se tornou uma noção lacaniana específica que aponta para algo supostamente quantitativo, um valor ou um valor de gozo. Complicando tudo, também denomina esse gozo em excesso de “objeto a” e de “mais-de-gozar” ao pensá-lo como valor a mais, mais-valor. Como chega a tais conclusões estapafúrdias? Ousa-se pensar aqui que ele trata um gênero, o “desejo em geral”, como se fosse já uma medida, um desejo abstrato no sentido quantitativo, sem mostrar como se dá a redução do desejo concreto a esse suposto desejo abstrato.

Tudo isso vem a ser, evidentemente, apenas de uma construção forçada que parece bem confusa, ilógica e pretenciosa. Contudo, vale perguntar: onde se encontra o erro primário desse modo de pensar? Em que ele diverge do modo de pensar de Marx, um crítico da redução dos valores ao valor econômico, da quantificação de tudo e da reificação?

Para Marx o trabalho é relação social e relação com a natureza, modo pelo qual os humanos se tornam humanos construindo para si mesmos um processo histórico. Logo, trabalho não é apenas atividade corporal, mas também atividade espiritual. Ao se expressar dizendo que há “trabalho dos homens sobre os homens”, diz que o trabalho é já, também, linguagem, além de ser desejo. Como o trabalho humano imediato, consciente e cotidiano cria mediata e inconscientemente um processo histórico, ele diz que esse trabalho é por enquanto – na pré-história – apenas trabalho alienado.

É evidente que a atividade inconsciente da mente, que tem seguramente características própria, as quais são objeto de estudo da psicanálise, não podem ser tomadas como trabalho no sentido de Marx. Pois, nesse sentido, trabalho é a atividade primacial que constitui a práxis. Dito de outro modo, consiste sobretudo num fazer ontocriativo que põe o animal humano como humano. E esse fazer é ao mesmo tempo subjetivo e objetivo. Logo, não se pode conceber que há um trabalho mental separado e homólogo do trabalho social.

Na verdade, a atividade mental é também, mesmo tendo características próprias, momento da práxis.[3] O sonho como forma dessa atividade, portanto, é apenas um momento crítico-reflexivo desse processo ontocriativo. Como o ser humano é um ser desejante e como o desejo (voltado como tal para algo que falta) se manifesta no sonho, o sonho é em última análise um momento “literário” da práxis. Ora, a ilusão de que se pode pensar o trabalho como atividade circunscrita à psique é produzida pela divisão do trabalho característica do capitalismo.

Em A ideologia alemã, no capítulo Feuerbach e História, Marx compara duas formas de sociabilidade: uma comunitária e a outra mercantil. A categoria central da comparação vem a ser a troca: na primeira, a troca aparece como troca com a natureza; na segunda, a troca aparece como troca entre os homens.

O primeiro caso pressupõe que os indivíduos estão unidos por um laço qualquer, seja ele a família, a tribo, o próprio solo etc.; o segundo caso pressupõe que os indivíduos são independentes uns dos outros e se conservam unidos apenas por meio da troca. No primeiro caso, a troca é fundamentalmente entre os homens e a natureza, uma troca na qual o trabalho daqueles é trocado pelos produtos desta última; no segundo caso, é predominantemente uma troca dos homens entre si (Marx e Engels, 2007, p. 51).

A diferença essencial entre essas duas sociabilidades implica numa diferença no modo de compreender o trabalho: na primeira, o trabalho é atividade corporal e espiritual em unidade; na segunda, essas duas dimensões do trabalho se encontram separadas:

No primeiro caso, é suficiente o entendimento médio dos homens, a atividade corporal e a espiritual ainda não estão de forma alguma separadas; no segundo caso, a divisão entre trabalho espiritual e corporal já tem de estar realizada na prática. (idem, p. 51).

No primeiro caso, as coisas produzidas são valores de uso e valores de graça; no segundo, as coisas se apresentam como mercadorias, ou seja, como valores de uso e valores de troca. A separação da atividade espiritual e corporal está aqui associada ao aparecimento da sociabilidade mercantil. Eis que a dissolução da comunidade por meio da economia mercantil faz nascer o indivíduo social, um ser dividido entre corpo e alma, soma e psique. Para Marx, ademais, esse indivíduo social é contrapartida do dinheiro, pois ele é essencialmente suporte do dinheiro – expressão exemplar da relação social coisificada:

No primeiro caso, a dominação (…) pode se basear em relações pessoais, numa forma de comunidade; no segundo caso, ela tem de ter assumido uma forma coisificada num terceiro elemento, o dinheiro. No primeiro caso, existe a pequena indústria, mas subsumida à utilização do instrumento de produção natural e, por isso, sem distribuição do trabalho entre diferentes indivíduos; no segundo caso, a indústria existe apenas na e por meio da divisão do trabalho.

O livro de Samo Tomšič, como se disse já no início, não é fácil de compreender principalmente porque contém confusões conceituais, assim como raciocínios que não se apegam ao objeto de estudo.  A dificuldade aparece não só por causa dessas confusões, mas também porque lhe falta uma lógica de exposição adequada – definitivamente, ele não se inspirou nem na Fenomenologia do Espírito nem em O capital.

 Assim como Marx fez uma crítica da economia política e deslindou os erros e confusões dos economistas clássicos e vulgares, o seu método pode ser aplicado na crítica da psicanálise lacaniana. Se há uma duplicidade no sonho, se ele é sempre significação e valor, o valor aí que causa o desejo só pode ser qualitativo, ou seja, um valor de graça e não de troca.

Referências

Adorno, Theodore – Sobre a relação entre psicologia e sociologia. In: Ensaios sobre psicologia socia e psicanálise. São Paulo: Editora da UNESP, 2015.

Freud, Sigmund – A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM Editores, 2019.

Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro I. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

______________ – A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

Tomšič, Samo – The capitalist unconscious – Marx and Lacan. Londres: Verso, 2015.


[1] Professor aposentado da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blogue na internet: https://eleuterioprado.blog

[2] O saber convencional sobre esse tema diz o seguinte: “Lacan desenvolveu pela primeira vez esse conceito que opõe o gozo ao princípio de prazer em seu Seminário “A ética da psicanálise” (1959-1960). Lacan considera aí que “há um gozo além do princípio do prazer”. Ainda segundo Lacan, o resultado da transgressão do princípio de prazer não é mais prazer, mas uma dor, já que há apenas uma certa quantidade de prazer que o sujeito pode suportar. Em seu seminário posterior, “O Outro Lado da Psicanálise” (1969-1970), Lacan introduziu o conceito de “mais-de-gozo” (plus-de-jouir em francês) inspirado no conceito de mais-valor de Marx: ele considerava objet petit a como o excesso de gozo, que não tem valor de uso e que persiste por mero gozo”.

[3] Note-se que “não por acaso a psicanálise foi concebida no âmbito da vida privada, dos conflitos familiares; economicamente falando, na esfera do consumo. Esse é o seu domínio, pois o campo de forças propriamente psicológico está limitado à região privada e tem pouco poder sobre a esfera da produção material” (Adorno, 2015).

Marx e Freud, um pelo outro

Qual é o tema da teoria crítica?[1]

Sandrine Aumercier[2] e Frank Grohmann[3]

A hipótese freudiana do inconsciente é inseparável de uma crítica do sujeito; o exame de Marx das categorias da economia política constitui uma crítica às relações sociais objetivas do capitalismo. As pesquisas enciclopédicas de Marx em todos os campos científicos de seu tempo, bem como as incansáveis incursões de Freud em disciplinas vizinhas – e, em particular, na teoria da cultura – mostram que nenhum dos dois desconhecia as limitações de suas respectivas abordagens. Pelo contrário, eles foram receptivos ao fato de que o método empregado exigia necessariamente uma extensão para além de si mesmo. Nenhum deles, entretanto, foi capaz de extrair todas as consequências dessa necessidade.

O que ambas as críticas têm em comum é que elas retornam à materialidade da vida psíquica e da vida social. A psicanálise o faz por meio da análise do desvio das formações do inconsciente; a crítica da economia política o faz por meio do exame das consequências sociais da redução da vida humana a um mero apêndice do movimento autônomo do valor, algo que acontece às costas do portador da função. O problema da consciência emerge em ambos como o verdadeiro escândalo.

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Realizando a filosofia: Marx, Lukács e a escola de Frankfurt

Autor: André Feenberg [1]

Resumo

Este artigo[2]explica a filosofia da práxis de quatro pensadores marxistas, os primeiros Marx e Lukács, e os filósofos da Escola de Frankfurt, Adorno e Marcuse. A filosofia da práxis sustenta que os problemas filosóficos fundamentais são, na realidade, problemas sociais concebidos abstratamente. Esse argumento tem duas implicações: por um lado, os problemas filosóficos são significativos na medida em que refletem contradições sociais reais; por outro lado, a filosofia não pode resolver os problemas que identifica já que só a revolução social pode eliminar as suas causas sociais.

Eu chamo isso de argumento “metacrítico”. Argumento que a metacrítica, nesse sentido, subjaz à filosofia da práxis, podendo ainda informar o nosso pensamento sobre a transformação social e filosófica. As várias projeções de tais transformações distinguem os quatro filósofos discutidos neste artigo. Eles também diferem no caminho para a mudança social. Eles desenvolveram o argumento metacrítico sob as condições históricas específicas em que se encontravam. As diferenças nessas condições explicam grande parte da diferença entre as teses, especialmente porque a filosofia da práxis está ancorada na circunstância histórica – daí decorre a resolução revolucionária mais ou menos plausível dos problemas quando estão escrevendo.

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Mais escuro? Quer um mundo mais escuro?

 Três temas entrelaçados: uma sociedade doente, os adoradores de Trump e o triângulo dramático

Bruce E. Levine [1]  – Counterpunch – 20/03/2024

Em 3 de março de 2024, a pesquisa New York Times/Siena informou: “Donald Trump lidera em relação a Joe Biden; obteve 48% a 43% entre os eleitores registrados”. Alguns milhões de americanos estão horrorizados com o fato de que outros milhões de americanos estão prontos para eleger como presidente não apenas um canalha, mas um canalha que não disfarça a sua canalhice.

Eis, pois, que uma pergunta apavorada sobrevém: o que será necessário para que os apoiadores de Trump finalmente fiquem horrorizados com ele? Quanto de fraude financeira? Quanto de interferência eleitoral? Quanta incitação a novas insurreições? Quantas obstruções da Justiça? Quantos furtos mais de documentos de defesa nacional? Quantas empreiteiras mais entrarão em falências? Quantas agressões sexuais? Quantos comentários sobre “agarrar na xoxota”?

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Da noção de capital financeiro

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

O capital financeiro e a financeirização são fenômenos conexos que se manifestaram no século XX, sem terem nascido ab ovo nem de novas hegemonias de classe nem de grandes mudanças de política econômica, historicamente datadas. Não podem, portanto, serem vistos como desvios sociais, políticos ou econômicos que não existiriam em um capitalismo alternativo e melhor, tal como costuma pensar certas correntes do marxismo vulgar e do keynesianismo crítico.

Eis que são processos inerentes ou próprios da lógica de desenvolvimento do capital, os quais não podem ser anulados ou revertidos ao bel-prazer de políticas econômicas alternativas. Ainda que estas em geral possam condicioná-los ou modificá-los, respondem, com graus de liberdade, às exigências estruturais e às crises do próprio capitalismo. Para entender tais fenômenos intrínsecos ao devir histórico desse sistema é preciso voltar à apresentação dialética em que consiste O capital. Contudo, é justo começar discutindo escritos do autor que examinou essa questão exaustivamente.

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Tocar os corpos, mudar o mundo

IHU: Vivemos um tempo de mal-estar generalizado. Paradoxalmente, o mesmo sistema que o provoca nos oferece os remédios. No entanto, estes anestésicos ou alívios imediatos prometidos nos impedem de formular as perguntas necessárias para mudar desde a raiz as condições de vida daninhas. Como sair desta espiral catastrófica?

Em Capitalismo libidinal (Ned Ediciones, 2024), Amador Fernández-Savater nos propõe, de forma machadiana, trilhar um novo caminho para estar no mundo de uma forma diferente, reapropriando o nosso próprio mal-estar como energia de mudança e transformação. Chama este caminho de “políticas do desejo”. Eis que “As ideias que não tocam os corpos deixam o mundo igual”.

Spinoza dizia que a essência do ser humano é desejar, o que chamava de apetites naturais. Contudo, quando essas necessidades biológicas se tornam desejos socialmente construídos, e que demandam algo que não precisamos, tornam-se capitalismo.

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Felicidade subversiva

A felicidade talvez tenha sido a maneira ocidental de discutir o que hoje é chamado de “bem viver” ou de “vida bem gostosa”. Ou seja, discutir a própria definição da vida boa

Amador Fernández-Savater[1] – 20/05/2023 – CTXT

Abraçando a nova direção / Acácio Puig

“Povos felizes não têm história”

A felicidade, hoje, pressiona negativamente o pensamento crítico. Eis que é considerada como uma ilusão. Mas também, soe ser pensada como um mandato obrigatório, como um sonho complicado da classe média: “seja feliz!”.

Postei no Facebook uma citação de Pasolini a favor da felicidade e alguém imediatamente respondeu: “Pasolini capacitista! – a felicidade está cancelada”.

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O mau estado do bom capitalismo – é isso?

Autor: Michael Roberts

The next recession blog – 28/03/2024

O livro The State of Capitalism: Economy, Society, and Hegemony – em português, O Estado do Capitalismo: economia, sociedade e hegemonia – (Verso, 2023), é uma obra ambiciosa.  Foi escrito por um grupo autodenominado de Coletivo, sob a liderança do professor Costas Lapavitsas, da Universidade SOAS, de Londres. A obra busca analisar todos os aspectos do capitalismo no século XXI a partir de uma perspectiva marxista.  Foi amplamente elogiado por nomes como Yanis Varoufakis e Grace Blakeley, estrelas luminosas entre os economistas de esquerda.

Segundo os autores, o livro “é o resultado de uma escrita coletiva que combina diferentes tipos de conhecimento e experiência”.  Eis que, durante vários anos, a Rede Europeia de Investigação em Política Social e Econômica (cuja sigla em inglês é EReNSEP) tem sustentado um esforço voluntário por parte de seus membros…. A escrita é coletiva, mas expressa uma voz comum.”

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Do “homem”, talvez, ao homem (sujeito)

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

No pequeno texto que se segue faz-se um comentário sobre o escrito de Ian H. Angus, A dissolução do humanismo marxista (Angus, 2018) publicado neste blog (aqui e aqui), com o objetivo de mais bem compreendê-lo. Esse filósofo norte-americano parte da constatação de que, nos anos sessenta do século passado, o marxismo relevante – para além do marxismo soviético que dominava nos partidos comunistas influenciados pelo estalinismo – veio a ser um “humanismo marxista” ou, o que seria o mesmo, um “marxismo existencial”.

Para essa corrente, que prosperou às margens da corrente principal bem mais volumosa, haveria uma essência humana, mas ela estaria perdida por enquanto nas formas de vida social existentes e que existiram no passado. Se está assim negada pelas condições históricas prevalecentes até a atualidade, pode ser recuperada eventualmente por meio de uma luta contra essas condições, visando mudá-las.  

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Finança e capital industrial

Autores: Scott Sehon e Stephen Maher[1]

Tradução: Sofia Schurig (Jacobina, 5/04/2024).

Hoje, é praticamente dado como certo por figuras políticas desde Hillary Clinton até Bernie Sanders que o aumento da finança nas últimas décadas ocorreu às custas da indústria. Essas opiniões também são amplamente difundidas entre os economistas políticos críticos, talvez o mais proeminente deles seja Robert Brenner e Cédric Durand. Seu surgimento, diz Durand, está “enraizado no esgotamento da dinâmica produtiva nas economias avançadas e na reorientação do capital para longe do investimento produtivo doméstico”. Segundo essa visão, o capital industrial “real” foi superado pelas atividades “fictícias” da finança. O aumento desta última é um sintoma de uma “fase tardia” do capitalismo, um prenúncio da disfunção e declínio do sistema.

Para Brenner e Durand, o aumento deste setor financeiro corrosivo dependeu crucialmente de sua capacidade de capturar o estado – levando à formação do que Brenner e Dylan Riley chegaram a chamar de uma nova forma de capitalismo, “capitalismo político”. Segundo esses teóricos, isso tem sido talvez acima de tudo evidente na política de flexibilização quantitativa (QE) do Federal Reserve ao longo de décadas: “infusões monetárias ininterruptas dos bancos centrais”, que Durand vê como resultado de “chantagem” por parte de um setor financeiro corrosivo.

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